sábado, 20 de agosto de 2011

dois faróis em luz alta

já é madrugada. uma noite chuvosa e meio fria que me lembra que, afinal, é inverno. porque os dias têm sido quentes demais até pro inverno carioca, que, muitas semanas atrás, sentiu frio de uns poucos graus positivos. e neste instante eu me recordo de alguém dizer que nada pode ser mais verdadeiro do que o clichê. e aquela mulher... ah, como parece ter me inquietado definitivamente! lembro também, agora, de quando vi a primeira vez "mulholland drive", de david lynch, e aquilo transformou minha percepção de arte. aquela mulher, ali naquele palco do teatro dulcina, no rio de janeiro, nesta noite... colaborou pra mais uma irrevogável mudança nalguma parte de mim que agora é hemorragia.

os clichês dizem: 'a melhor atriz brasileira'; 'um de nossos grandes orgulhos'; e, o mais clichê dos clichês, 'show de interpretação'. mas eles estão certos, todos certos! só que... já não se trata mais de nome, 'renome' (outro clichê sem vergonha)... eu posso tentar aqui dizer do que se trata. são as escolhas feitas; é a longa história vivida; é a memória. é a energia vital; é o inexplicável. é a alma reluzente que traspassa os dois olhos marejados, enormes, como dois faróis em luz alta, que vi.

no palco, perto do proscênio, apenas uma cadeira. nesta, uma luz incidente e mais duas vindas das laterais. e quando as da platéia se apagam, lá vem ela caminhando de uma das coxias do lado esquerdo. numa passada elegante, austera... mortal. "quando fernanda montenegro se sentou numa cadeira, o acontecimento teatral estava estabelecido. quando quase imóvel começou a falar, não havia dúvida de que o invisível se tornava nítido (...)", escreveu manoela sawitzki da revista bravo. e a partir daí, já não é mais talento, técnica, texto; já nem é mais simone de beauvoir sobre jean-paul sartre. já não é mais sequer o grande amor retratado! é tão somente uma força misteriosa, indizível, naquela calça preta, quase imóvel à cadeira, mas numa camisa branca, pulsante, e num cabelinho curto, preso, em erupção. essa tal força misteriosa, que me arrebatou e desconstruiu. no palco, somente a luz, a cadeira e aquela mulher - iluminada e radiante, que ao fim de 60 minutos de espetáculo me roubou por completo a alma, e, sabe-se lá, irá devolver!

os clichês estão muito certos, é claro. mas eu arrisco e inteiramente me responsabilizo: testemunhei em "viver sem tempos mortos", no palco do recém reaberto teatro dulcina, na noite do dia 20 de agosto de 2011, a vida tão viva aos oitenta anos da maior atriz deste mundo, fernanda montenegro. eu me sinto mais atento, mais vivo. obrigado, fernanda. não vou, e nem poderia, esquecer.

Um comentário:

José Maria Alves Nunes disse...

Parabéns pelo texto.
Li e gostei muito.
O conceito de arte anda meio deturpado por conta da mídia que só enxerga cifras à frente.
Mas, vamos lá, aqui e ali os verdadeiros artistas tem o seu quinhão na mídia também.
Avante!