sábado, 6 de junho de 2009

Qual é a lei aqui

“Ela sente! É que ela se segura pela fé!”

Quando o padre disse aquilo que está mais ou menos textualizado aí em cima, ele sabia, mas, por certa tentativa de retransmitir uma cena pouco palatável socialmente, saiu-se capenga com a desculpa, ou realmente não sabia e, portanto, disse-o mais até para tentar convencer a si mesmo de que a tal cena que todos presenciavam era de alguma forma aceitável. A viúva estava ali, sentada próxima do caixão, leve, às vezes sorridente, enquanto eu e todos os outros nos despedíamos do corpo ainda não encoberto, no velório. Um tio dos meus irmãos só por parte de pai morreu ontem à noite. Estava muito doente do corpo; sofrera inúmeras internações hospitalares nos últimos anos, e recentemente havia sinais mais fortes de que tudo estava por acabar. Mas quem morreu, se na verdade ali do lado do caixão havia uma senhora que sorria pairando sobre tudo aquilo, num jardim florido particular, talvez acreditando que aquela pessoa que dizem ser seu marido dormia tranqüila no centro de uma roda com pessoas chorosas? Se quem morreu estava ali somente dormindo, não terá morrido ainda mais alguém que não consiga reconhecer morte, o morto como morto, o morto como o seu marido? A minha “tia afim”, a viúva, também está muito doente - e isto é o que o padre sabia ou não. Mal de Alzheimer. Nada é mais morte na vida.

E o padre falava, lia trechos da Bíblia, chamava filhos e netos do meu tio para acompanhá-lo nessa tarefa. Ao não ser atendido no ato pelas pessoas que àquela altura estavam ainda menos firmes, ele insistia, simpático! “Vamos! Você que era só fé até bem pouco, venha ler!” É que, não adianta. Ele, o padre, assim como a religião (num modo generalizado), dificilmente alcança o profundamente humano. Às vezes eu tenho a impressão de que, em sua pura humanidade, no seu medo (sentimento que talvez seja o mais humano de todos), a pessoa procura sua espiritualidade (algo que nem sempre se acha na religião), e, ao adentrar o terreno religioso, ela perde muito do ser humano. E se perde, é claro. O padre não conseguia lidar bem com o que havia de humano em estado bruto (ou frágil) na capela. Todos os corações fragmentados, incertos, momentaneamente desesperançados ali presentes. Só conseguia lembrar palavras milhões de vezes já ditas, de fé milhões de vezes proclamada. Mas a emoção é mais forte do que a fé... e só pode haver fé a partir da emoção.

A minha tia com Alzheimer parece não sentir mais emoções, e certamente não mais conhece fé. Não reconhece o marido morto, não reconhece morte. Ela agora vive numa dimensão diferente, enquanto seu corpo ainda perambula entre nós. Nada me foi tão impactante hoje do que vê-la. Nem o meu tio fazendo lembrar o que eu vivi com meu pai ainda ontem em 2007, algo que está em mim de um jeito definitivo, que se mostra vivaz toda noite, sempre que eu repouso a cabeça no travesseiro. Meu tio, que era o dono de uma casa símbolo de alegria na nossa família de gente de parte de pai-e-mãe e pai e mãe, hoje tinha o mesmo amarelado do meu pai no caixão. Todas as coisas perdem sua cor original. Tudo tem fim, e o Fim é mais forte do que tudo. Mas isso são palavras de quem um dia começou a perceber a perda da cor da sua própria fé espiritual. Eu não sei bem aquilo em que acredito. E não sei o que eu quero da vida trabalhadeira, mas isso já é outra estória. Eu não sei onde está o Fim. Eu quero tanto, tanto, reencontrar o meu pai... acho que mais do que encontrar Deus a minha frente. Talvez porque hoje eu seja tão humano, tão sentidos e emoções, tão memória – que é a Vida por aqui! E Deus sabe que eu estou certo, e há de me perdoar por querer hoje mais reencontrar meu pai. E há até de me afagar por isso! Afinal, Quem foi que me fez humano?

Estar vivo é ficar atento, reconhecer o amor, transferir afeto, é ter memória. Essa é a lei por aqui! E hoje está me doendo muito, muito. Porque eu sinto sangue, e não compreendo dogmas. Deus, não se sabe se é o que pensam! Não se sabe se Ele é o que diz a Bíblia. O meu pai é o amor que eu sinto, e o meu tio, a alegria naquela outra casa. Por mais que o padre (e a minha angústia) lembrasse hoje que o mundo é rápido. Por mais que se diga que esta vida é uma sombra borrada da outra que virá. Diante do corpo humano sem vida num caixão, a religião deveria chegar mais perto... Tão perto é o desconsolo! O mundo espiritual é somente algo que se faz imprescindível haver, como um lugar que está para além daquele portal que virou o corpo estranhamente alterado pela ausência de vida, e que eu particularmente tanto necessito reconhecer, mas que naquela hora é tão pouco reconfortante ao mais verdadeiro da minha condição. Estar vivo é permitir-se frágil, mas é também deixar que venha a vida desse jeito brutal que ela vem. É reconhecer que se fez o que se pôde para assegurar a permanência de alguém querido aqui no mundo, mas também é sentir-se trapaceado por Deus quando o Fim vem e se faceta num funeral, depois de tudo o que se fez! E eu conheço pessoalmente rochas de cristal que se empenharam pelo meu pai e pelo meu tio. E como isso conforta, ainda que doa – porque há belezas que por certas razões fazem doer. Não há vida humana sem a mais humana dor. E fé no espírito só se alcança com a emoção. Viver de verdade é sentir emoções. Indissociavelmente! Isso é mais forte do que qualquer dogma! É tão forte quanto a chegada do Fim.